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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Documentário 03: Romântico, Romantismo, romantismo

Para responder a estas perguntas, comecemos por nos entender quanto aos termos. Quando se fala em amor romântico, pensamos de imediato no final das histórias cujos protagonistas “viveram felizes para sempre”. Felizes, isto é, juntos e sem conflito, na harmonia dos casais que se compreendem, se estimam, se respeitam – e se desejam. Tal estereótipo reaparece na queixa – habitualmente feminina – de que o parceiro não é suficientemente “romântico”, ou seja, não corteja a mulher com a freqüência e o cuidado a que ela aspira: cuidado que se traduz no trazer flores, em dizer que a ama, em dedicar tempo à sua companhia, em demonstrar de mil maneiras que a valoriza – e que a deseja. Aqui romântico opõe-se a rotineiro ou banal: os “momentos românticos”, a “atmosfera romântica”, evocam uma meia-luz suave, preenchida com caricias e olhares, com um enlevo que leva os parceiros a se retrair do mundo, pois “são tudo um para o outro”. Mas romântico também significa alguém absorvido em seus sonhos, que não leva em conta a realidade, “com a cabeça nas nuvens”. Embora o objeto dessas meditações possa ser algum projeto mirabolante ou a “morte da bezerra”, o mais comum é que se trate de alguém por quem o distraído se apaixonou “perdidamente”. E por que o romântico não liga para o mundo? Duas possibilidades se apresentam: ou a felicidade de se saber também amado o impregna tão completamente que o faz esquecer tudo o mais, ou ele vive no desassossego e na insegurança, para não dizer no desespero: aquele ou aquela a quem ama não lhe retribui o sentimento. Neste segundo caso, o estado de alma romântico se caracteriza pelo desejo necessariamente insatisfeito de possuir um objeto inalcançável, ao mesmo tempo em que não se pode deixar de perseguir tal objetivo: o romântico sofre porque tropeça no obstáculo maciço representado pela indiferença daquele ou daquela a quem entregou seu coração. O obstáculo também pode assumir a forma de um terceiro: aqui o ser amado retribui o sentimento que lhe é dedicado, mas este não pode se consumar na união porque algo exterior ao par o impede – o ódio entre as famílias (Romeu e Julieta), a condição de casado de um dos amantes (Tristão e Isolda), a diferença de origem, raça ou condição social (Peri e Ceci), etc. A noção popular de “romântico” recobre, como vemos, coisas bastante diferentes, e até opostas: “viver feliz para sempre” e “não poder ser feliz porque o que amamos está além do nosso alcance”.E é assim porque ela surge da diluição e da banalização de algo bem mais complexo, a que o filósofo Benedito Nunes chama “a categoria psicológica do romantismo”, distinguindo-a do movimento artístico do Romantismo, que se desenvolveu grosso modo entre 1760 e 1860. Para ele, o romantismo com “r” minúsculo é um modo de sensibilidade, que no final do século XVIII ganha

 

seus contornos com os poetas alemães – os irmãos Schlegel, Schleiermacher, Novalis, Schiller, Herder, Hölderlin – e permanece como uma figura cultural mesmo depois de esgotado o contexto que lhe deu origem. Diz Nunes, comentando o texto de Baudelaire “Qu’est-ce que le Romantisme?”, no qual o poeta o define como “um predomínio do sentimento que excede a condição de simples estado afetivo, busca a intimidade e a espiritualidade, e aspira ao infinito”:“A sensibilidade romântica é dirigida pelo amor da irresolução e da ambivalência, pela passagem rápida do entusiasmo à melancolia, da exaltação confiante ao desespero. Ela contém o elemento reflexivo da ilimitação, da inquietude, da insatisfação permanente de toda experiência conflitiva aguda, que tende a se reproduzir indefinidamente à custa dos antagonismos que a produziram.”  A “sensibilidade romântica”, portanto, nada tem da placidez que a concepção popular lhe atribui, associando-a à sensação de plenitude vivida pelo casal que se abraça diante de um pôr do sol “romântico”. Não que tal plenitude não possa ocorrer: ela existe, mas é rara e frágil, a superfície enganadoramente serena de um relacionamento atravessado por emoções situadas no pólo oposto ao da serenidade - “inquietude”, “insatisfação permanente”, “exaltação confiante”, “desespero”. Ou seja, na experiência de sentimentos extremos e vividos com enorme intensidade, na oscilação entre picos de euforia e abismos de desesperança, na incerteza de se somos amados com a mesma intensidade com que amamos, e, caso o sejamos, se essa disposição do ser amado para conosco resistirá às intempéries da vida e permanecerá “para sempre”. A bem dizer, a sensibilidade romântica extrapola em muito o domínio do amor entre duas pessoas. Manifesta-se também na vivência de proximidade com a Natureza, no agudo sentido do tempo e das raízes culturais que conferem a cada povo ou nação uma identidade distinta da de todos os demais, no valor concedido à imaginação e à criação artística – que conduz à idéia de gênio, destinada a uma brilhante carreira no imaginário ocidental –, na oposição a tudo o que é mesquinho e pacato,encarnado exemplarmente na figura do burguês filisteu. Tais crenças e valores, que acentuam de modo inédito o que é mais próprio de cada indivíduo, disseminam-se a partir do final do século  XVIII graças a obras como Os sofrimentos do jovem Werther (Goethe) e La Nouvelle Héloïse (Rousseau), cujo sucesso marca o surgimento da “atitude romântica”. As raízes sociais e ideológicas dessas atitudes devem ser procuradas nas transformações econômicas, sociais e culturais que se iniciam com a revolução industrial e ganham impulso durante toda a primeira metade do século XIX. O Romantismo como movimento artístico é uma reação contra essas novas condições, e contra suas conseqüências mais visíveis – entre elas, a separação daCarte do artesanato e do mecenato, por um lado, e da indústria nascente, por outro; o surgimento das grandes cidades com todas as suas mazelas; a mecanização e a racionalização da vida; e assim por diante. É também uma reação contra o universalismo e o racionalismo do século XVIII, contra o ideal iluminista do predomínio da Razão, que, embora tenha conduzido a idéias tão importantes e grandiosas como as de humanidade, liberdade e cidadania, deixa de lado o particular (quer este seja localizado na nação, quer no individuo). Aos olhos dos românticos, o maior erro do Iluminismo foi ter desprezado o valor das paixões, nelas vendo apenas obstáculos no caminho da verdade e da felicidade.Sendo também – e insisto nesse também – uma reação ao mecanicismo racionalista, o Romantismo apelará à religiosidade como veículo para a elevação espiritual e como forma de contato do homem educado com seus semelhantes não-educados, o que dará origem a algumas vertentes conservadoras e mesmo francamente reacionárias6. Mas por importantes que sejam estas dimensões para compreendemos o contexto de idéias e atitudes no qual nasce o amor romântico, elas não constituem nosso assunto, e por isso delas nos despedimos com essa rápida menção. Seja-nos apenas permitido acrescentar que o lugar eminente que o amor ocupa nesta visão de mundo se deve ao papel nela desempenhado pela noção de energia, e, portanto por aquilo que no indivíduo é da ordem da vontade e das emoções. Como contraponto, lembre-se que no pensamento iluminista o mesmo lugar é ocupado pela idéia de ordem, entendida como ajuste perfeito das partes umas às outras, de onde a metáfora onipresente do Deus relojoeiro. Essa idéia determina, por exemplo, a concepção da Natureza como um imenso aparelho governado pelas leis da mecânica, iguais em toda parte; determina também a visão do espírito humano como máquina de pensar, cujas engrenagens funcionariam muito bem se não fossem atrapalhadas por resquícios infra-racionais, como a adesão à religião e a derrota da razão pelas paixões - quer isso aconteça no domínio do conhecimento (conduzindo à formação de idéias falsas), quer no da ética (conduzindo a decisões funestas para si e para os outros). Nada mais estranho à sensibilidade romântica do que esse ideário: para ela, a Natureza é uma totalidade orgânica e não mais mecânica (Schelling); para atingir a verdade profunda, o sentimento é tido como via mais segura que as rasas elucubrações da razão. Daí uma nova concepção do que é o sujeito, e, portanto o indivíduo: um foco irradiador de energia, recebida da Natureza como dom e constituinte do mundo do espírito, tanto na vertente individual (de onde o valor conferido às artes, sobretudo à música) como na vertente coletiva (de onde a idéia de uma “alma nacional” da qual os artistas românticos se farão porta-vozes, inventando o romance histórico, valorizando os contos, mitos e lendas de seus países, e utilizando em suas criações elementos populares e folclóricos, transformados pela imaginação e pelo talento em elementos de valor universal).


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